terça-feira, junho 23, 2015

Helena

Nunca aproveitamos como deveríamos a presença das pessoas que amamos, que admiramos, que nos inspiram e nos movem. Esse gosto amargo que fica, já aprendi na prática, é inevitável quando estamos diante da morte de alguém que ocupa esse lugar para nós. Não só isso, mas também o sentimento dilacerante da impotência, o reduzido tamanho e poder de qualquer de nossas ações diante da inevitável e incontornável morte.

Há tudo isso no luto, na dor da perda e da separação. Mas há algo de diferente na dor de uma separação como a que estou vivendo agora, uma sensação que surge da particularidade dessa relação, que é a relação entre analista e analisando. Foram cinco anos em que vivi essa relação; cinco dos mais intensos, duros, fundamentais. Cinco anos em que transformei muita coisa em mim mesmo. Mudanças que simplesmente não consigo imaginar sem minha relação com essa pessoa, que em cada passo e hesitação me ajudou a contemplar o que há de mais esquivo e secreto dentro de mim, nos meus desejos, no meu inconsciente.

Eu conhecia muito Helena, pela mudança profunda que ajudou a operar em mim, pela dedicação e habilidade com que exercia seu difícil e desafiador trabalho. Pela sua perspicácia e sensibilidade. Mas não conhecia Helena em absoluto, pois não sei de seus gostos, seus hábitos, seus ódios e amores, as pequenas coisas de seu dia-a-dia. Poderíamos ter sido amigos, fosse o nosso encontro em diferentes circunstâncias, e talvez eu a conhecesse e não-conhecesse ao contrário. Mas nosso encontro foi na investigação analítica, espaço no qual é o paciente que tem a centralidade, e o analista encontra-se em um papel de ajudante na investigação psíquica. Ele está nos bastidores, opera as câmeras, os cenários, a iluminação. Faz o espetáculo acontecer, mas fora da cena. Em termos ideias, Freud disse que "O médico [leia-se, analista] deve ser opaco para o analisando, e, tal como um espelho, não mostrar senão o que lhe é mostrado".

Isso é apenas uma imagem, pois pessoas-espelho e pessoas-opacas não existem, e nem seria o analista bem sucedido em seu trabalho se apenas refletisse o que lhe é dito, se não conduzisse e instigasse. As décadas de estudo, dedicação, prática e conhecimento que antecederam meu encontro com Helena deram-lhe a capacidade admirável de ver, por vezes nas palavras mais aparentemente insignificantes, o sentido profundo de minha subjetividade. E, com firmeza e suavidade, conduzir e andar ao lado, sendo a companheira dessa descoberta do que sou. Calar-se e ouvir atentamente; falar, questionar e desafiar quando necessário. Descobrir junto a mim.

A caminhada se faz a dois, e não há nada "neutro" em uma relação analista-analisando. É uma combinação entre duas pessoas, e, como tal, não pode existir outra como aquela. Certa vez, quando eu conversava com Helena sobre essa relação, e sobre o critério para uma pessoa encontrar um "bom analista", ela me ilustrou essa relação com a metáfora de um relacionamento amoroso. O analista não vai ser bom para alguém "apenas" porque é inteligente, experiente, culto, perspicaz; nem será ruim "apenas" porque é novato, inseguro, hesitante. Há uma afinidade, uma empatia, que é fundamental para que se construa a relação, para que ela seja bem sucedida e se solidifique, que traga seus frutos. Cada processo de análise é, portanto, único.

A minha relação com Helena era muito bem sucedida. E, se, por um lado, me dói não ter feito parte de sua "vida pessoal", me faz falta ter lhe dado um abraço e lhe dito um sincero "obrigado" antes que ela partisse, por outro sei que fiz parte do mais profundo do que essa excepcional mulher foi. Acredito, tal como Marx, que o que há de mais propriamente humano é o trabalho: por meio dele alteramos a realidade, interferimos no mundo, mudamos nossa consciência e nossas condições de vida. Helena dedicou sua vida ao trabalho de analista, no qual se tornou excelente. Eu dividi esse, e nenhum outro, aspecto de sua vida: o seu trabalho, sua característica mais profundamente humana. Sua dedicação e seu amor pelo que fazia podem ser medidos por esse cuidado: quatro dias antes de sua morte, ela se dedicou a sentar com uma grande amiga e colega e lhe passar os contatos de seus pacientes, e uma indicação escolhida a dedo de alguém que poderia continuar (mais correto seria dizer "iniciar um novo") trabalho de análise com esses seus "órfãos". Era esse o tamanho da centralidade, da dedicação, que Helena tinha com seu trabalho. E o que sou hoje, é, também, o resultado de seu trabalho.

Por isso, por mais que não conheça a família, os filhos, os detalhes de Helena, posso dizer que me relacionei com ela de forma tão profunda como ela se relacionou comigo; ela, que sabia tantos detalhes íntimos de minha vida, de meu passado, de meus desejos, como talvez nenhuma outra pessoa saiba. Sua morte me dilacera, mais uma vez. É um pedaço arrancado de mim, um luto que, passados poucos dias de sua morte, mal comecei a fazer. Diante dessa dor tão abrangente e multidimensional, dessa tarefa imensa e angustiante da separação, uma coisa me consola: a transformação que o trabalho dedicado, persistente e paciente de Helena ajudou a operar em mim é uma herança profunda que carrego dela. Ou seja, aquilo que sou e que posso fazer é a marca que, através de mim, ela deixa no mundo. Assim como será com seus demais pacientes. Ela foi a pessoa que efetivamente me mostrou, passando por cima de tantos e tão arraigados preconceitos, o potencial transformador da psicanálise. E me ajudou também a conhecer, na prática, que é necessário, enfim, muito mais do que dogmas, fórmulas prontas e esquemas prontos para ser subversivo, transformador, revolucionário. Ela morreu serena, sóbria, consciente. Espero, da mesma forma, seguir adiante com o que levo de sua intervenção nesse mundo.

Um comentário:

Hemoly disse...

Sinto pela sua perda.