quarta-feira, abril 15, 2015

A morte à espreita - Algumas se ganha, algumas se perde

Ligo o celular, que ficou uma hora carregando enquanto estava na análise.
Uma hora em cinco mensagens.

17:03 - Pards.
17:38 - Preciso de ajuda!
17:39 - Tô em completo desespero!
18:04 - Adeus Pards!
18:05 - Eu te amo!

Primeira coisa. Olho em volta, procuro táxis, na mão incerta o telefone disca. Besteira, seis da tarde o táxi demora mais nas ruas entupidas, corro pro ponto, entro no ônibus espremido. Consegui o primeiro contato ainda na rua. A voz, pastosa, chorosa, me atende.

O que você fez?
Tomei uns comprimidos.
Quantos?

Não te escuto, não te escuto. A ligação cai. A mão no bolso procura o bilhete único, a mochila grande atrapalha enquanto me espremo deseducadamente entre as pessoas, sem me importar. Caixa postal, passo o bilhete no leitor, rediscando. Chama. Alô? Quantos você tomou? Não te escuto, cai. Mensagens.

18:10 - Vem aqui em casa.
18:10 - Não to te ouvindo.
18:15 - Já tem gente vindo.
18:15 - Obrigado!

Ligo de novo. Ela quer despistar. Quem está indo? Estou indo também. Deixa a porta aberta. Me espremo grosseiramente, o ônibus dispara pelo corredor. Ligo pro meu irmão, psiquiatra, repetidas vezes. Nada. É muito devagar. Tudo é devagar. Estou calmo, na verdade. Só é devagar. A minha vida me preparou para estar calmo agora. Foi um bom preparo, e sei que dessa vez é só fazer tudo certo. Entre um ponto e outro, uma corrida. Entro no segundo ônibus. Devem ser uns quinze, vinte minutos até o portão. Está aberto, discretamente destrancado. Ótimo. Ótimo sinal.

Encontro ela no chuveiro, a cara grogue, sentada sob a água que cai. Fecho a torneira, estendo a toalha. Se seca, se veste. Procuro táxi, ligo, falo com os outros que estão vindo. Consigo um carro emprestado. Vamos. São mais uns vinte minutos. Falo com meu irmão, ele tranquiliza: não é algo que cada minuto conta. Tudo bem, já sabia, mas sempre é bom ouvir o que já sabemos nessas horas; ouvir dez vezes. Minha cabeça, no fundo, já está preocupada com o amanhã. Tirar os comprimidos é a parte mais fácil. Vamos. Cerca de uma hora após as mensagens, ela está na sala para expelir os comprimidos.

Já posso sentar. Chorar. Consegui; conseguimos. Ela vai viver. Por quanto tempo? Eu não sei ainda, mas essa noite ela vai viver. A dor daquele dia, há exatos três anos, volta sobre meu corpo tenso. Os fantasmas adormecidos me voltam. Os tempos se misturam. Nessa tarde ela me pediu para ir com ela ao médico; eu não pude, não tive tempo. Não fui só eu, mais um e mais outro não puderam. Estava tudo bem naquela hora, mas de repente veio o desespero. As mensagens vieram, o desespero de quem ainda acredita que é possível vencer a si mesmo e um arroubo de desesperança, de dor lancinante. A vida, escondida, clama. Vimos, corremos, chegamos. Três anos antes, ela havia me chamado também. Eu não pude, eu dei bolo, eu dei um cano, eu não fui. Eu recebi mensagens, duras, ásperas. Egoísta, era do que ela me chamou. Me doeu, como sempre. Melhor conversar depois, com calma. Não sabia: não tinha depois. Eu não estava lá. Não teve conversa. Não teve ajuda. A ambulância, o pai, tentaram levar ela. Mas naquela vez não era a primeira, tinha experiência e decisão. Aquele momento se tornou tudo, e não teria o arrependimento. Teria a morte. O arrependimento, se houvesse, não era mais dela. Ela dormia, pela primeira vez sem os pesadelos, nenhum deles.

Foram cerca de dez horas naquela noite, antes que ela pudesse acordar e dizer que não conseguia acreditar que tinha feito aquilo. Ela queria. Queria querer viver. Quantas vezes me "confortei" pensando que a morte estava à espreita? Que se naquela noite estivesse lá, que se tivesse conseguido impedir, que a morte estava à espreita, ainda; imensa, onipotente, iniludível, inevitável. As suas duras palavras ressoavam. Os gestos, as músicas que deixou, o silêncio. A morte venceu, dessa vez. Foram vinte e seis anos até seu triunfo; decisivo, derradeiro. E agora? O que vencia era a vida? Uma prorrogação? Uma chance, um intervalo, uma vida. A morte, à espreita, naquela enfermaria, naquele mundo sórdido. A morte, sobre cada um e todos, e sempre. Nesse mundo, que é feito mais de morte que de vida.

Penso agora no hospital, imaginário, ela acordando. Seria diferente. Uma alegria amaríssima. Pois seria, sem uma triste sombra de dúvida, acompanhada da frustração de seu olhar. "Mais uma vez não consegui", seria o gosto de seu despertar. De quem seria a alegria? Seria talvez, uma alegria egoísta de quem quer manter alguém aqui "apesar de tudo"? A morte estava à espreita já há tempo demais. Tempo demais para que pudéssemos vencer de verdade. O corpo, ele pode ser mantido por anos, décadas. Mas é preciso acreditar que ainda é possível querer viver. Que é possível derrotar os pesadelos, as vozes, as angustias, as tristezas. O peso a esmagar. Por isso, fui solidário. Por isso que disse que não há egoísmo em partir. Por isso, talvez, o preço da alegria nesse hospital - essa alegria que nunca tivemos - fosse grande demais para se pagar. A alegria só é verdadeira quando pode, ainda que posteriormente, ser compartilhada com alguém ainda capaz de olhar para trás e dizer: ainda bem que não consegui. Do contrário, a morte venceu mais uma vez. Seria vida? Seria a luta cotidiana, como todas as outras, apenas com a morte à espreita?

A morte está à espreita, ainda, e sempre. Nessa tarde, poderíamos ter perdido. Mesmo com chances bem melhores de ganharmos, no jogo sempre há o acaso. E poderíamos ter perdido. Vencemos, mas é uma vitória efêmera se não conseguimos seguir lutando, uma vez e sempre. Não pelo corpo, mas pelo espírito. Não por um, mas por todos. Pela ideia, para que ela seja verdadeira, de que, apesar de hoje, apesar de tudo, é possível. É possível querer viver. Não há dia que não se trave essa luta.

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