quinta-feira, setembro 04, 2014

A morte de mais um joão-ninguém



Ontem a greve da USP completou cem dias. Cem dias de uma luta heroica, contra a polícia, o governo e a mídia. Uma luta que começa motivada por um arrocho salarial, ou seja, um ataque às condições de trabalho na universidade, mas que em seu decorrer transcendeu em muito essa luta, mostrando que o arrocho salarial era apenas a ponta do iceberg. O ataque à universidade, por mais que ela seja hoje uma ilha de elitismo, é um ataque à população de conjunto, pois essas "reformas" irão elitizá-la cada vez mais e tirar o que ela ainda tem de público, como o atendimento no Hospital Universitário, que a reitoria pretende desvincular da universidade para, logo, passar às mãos de alguma empresa privada disfarçada de OS (organização social).

Para continuar a luta, os trabalhadores da USP e das estaduais paulistas fizeram um enorme ato, que foi até a porta da reunião de negociação com o Cruesp (Conselho dos Reitores das Universidades Estaduais Paulistas) cantar a plenos pulmões aquilo que se tornou o lema dessa greve, tomado dos garis do Rio: Não tem arrego!

Mas esse texto não é sobre nada disso. É sobre algo que acontecia paralelamente, enquanto essa luta ocorre. É sobre um cadáver encontrado ao lado do bloco F do Crusp, virando logo uma "fofoca do dia" na universidade. Ou, mais precisamente, sobre a pessoa que se tornou, naquela madrugada fria, um cadáver que ficou ali estendido, por horas, tomando chuva, até que fosse encontrado.

A pessoa por trás desse corpo era João. Eu nunca conversei com ele, mas sempre o via por aí. As últimas vezes que em que o encontrei foi no acampamento que os trabalhadores da USP ergueram diante da imponente reitoria da universidade, como um marco de sua luta. João aparecia lá. A história dele eu não sabia. Como todo mundo que anda pela USP sabe, ali é um lugar em que circula uma grande quantidade de "loucos": Gautiê, Piauí, João...

Eles são gente que não tem lugar nessa sociedade. Não vendem seu trabalho, não geram mais-valia e, portanto, nessa sociedade não têm valor algum. São jogados à rua, jogados à sua própria sorte. São olhados de canto, com medo, pelas "pessoas de bem". Ficam na USP porque sabem que ali é, de certa forma, um lugar um pouco menos hostil, que ali existem muitos trabalhadores e estudantes que repudiam a presença da polícia, que para eles sempre representa um perigo. Que ali, muitas vezes encontrarão alguém disposto a conversar, a ceder uma bebiba, uma ponta de um baseado, alguma coisa que os lembre que eles também são gente, como os outros.

Essas pessoas não nasceram na condição de párias sociais. É esse mundo, de um jeito ou de outro, que os joga, pelas piores formas possíveis, nessa situação. Nossa sociedade fecha os olhos para isso, finge que não é com ela. É o "liberalismo aplicado à vida": cada um cuida do seu, e foda-se os problemas do vizinho. João é mais um destes, que não nasceu como um sujeito maltrapilho que andava pela USP. Eu não sei quase nada da sua vida. Mas sei que ele foi um professor da rede pública de ensino do estado de São Paulo, e que, como muitos outros, foi perseguido por lutar em defesa da educação pública. Na histórica greve de 2000, o governo de Mario Covas do PSDB, muitíssimo bem auxiliado pela burocracia sindical do PT que dirige o sindicato dos professores, conseguiu consolidar a correlação de forças que até hoje persiste nessa categoria: o governo os massacra, impõe novos ataques a cada dia, precariza impiedosamente todas as suas condições de trabalho.

Nenhuma categoria de trabalhadores é derrotada sem resistência. E os professores, hoje uma categoria que é marcada por muitas derrotas, resistiram bravamente. Essa resistência foi feita, como hoje a luta da USP, contra a polícia, o governo, a mídia. E tinham ainda um outro obstáculo, que era seu próprio sindicato. Os protagonistas dessa luta foram milhares de homens e mulheres que estavam - ao contrário dos diretores do sindicato - sofrendo a cada dia nas salas de aula a precarização de seu trabalho. Entre eles estava João. Para que o governo vencesse, ele precisou derrotar essas pessoas. E na greve de 2000 vieram muitas demissões. Caçaram a aposentadoria de Tonhão, um lutador que conheci também nas greves da USP, nas quais participa levando seu apoio. Exoneraram João.

O que aconteceu com João depois disso? Eu não sei. Não era seu amigo, nunca conversei com ele. Mas sei do que esse mundo é capaz para derrotar um peão que ousa levantar a cabeça para enfrentar seus patrões. E, o que quer que tenha passado pela vida de João depois de sua demissão por lutar, foi o que o levou a virar um peregrino da USP, andando maltrapilho por aí. Das pessoas que conversavam com ele, ouvi muitas coisas: que ele tinha momentos de lucidez, em que contava as histórias de sua luta, e outros de embriaguez - é muito provável que tenha se tornado alcóolatra. Sobre esses outros momentos, há histórias nada bonitas de João: que assediava as meninas, que ameaçava.

Dou crédito a essas histórias porque as ouvi de muitas pessoas, inclusive pessoas em que confio. Mas não atribuo apenas a essas histórias o "mérito" por ter ouvido comentários como esse sobre a morte de João: "Sinceramente? Ainda bem que morreu. Foi tarde. Só metia medo nas pessoas. Não sei como permitiam uma pessoa dessas ficar solta pela USP e colocar medo nas estudantes."

Os comentários como esse devem ser feitos às dezenas nas conversas da USP. Quando não são públicas, como no caso acima, devem ser ainda piores. Não defendo em nenhuma instância a atitude de João de assediar as meninas, independente da forma como o fizesse. É uma dessas monstruosidades que ocorrem mil vezes por segundo em nosso mundo, um testemunho inequívoco da podridão de nossa sociedade. Isso, no entanto, está muito longe de ser tudo o que João era ou fez. A mesma sociedade que o ensinou a assediar as mulheres foi a que lhe tomou seu trabalho, seu sustento, lhe impôs uma vida de andarilho e alcoolatra. Sobre isso, essas vozes "revoltadas" calam. A mesma sociedade que ensinou João a assediar as mulheres é a que ensina cada estudante endinheirado da USP a fazer a mesma coisa; mas eles não são barbudos maltrapilhos que não tomam banho: são garotos perfumandos, com roupas caras, malhados da academia, que o fazem em festas open bar promovidas pelas suas atléticas, onde eles se embebedam sem o olhar condenador de sua sociedade, e onde podem tratar as mulheres como objetos sexuais sob a conivência de todos, inclusive de grande parte dos que se revoltavam com a forma como João assustava as estudantes.

Quando João deu o melhor de si para o mundo, que foi colocar em jogo o seu ganha-pão para defender uma escola digna para os filhos dos trabalhadores, ele foi punido com todo o "rigor da lei". Quando ele passou a ser um "vagabundo" andando pela USP, nenhuma instituição dessa sociedade se preocupou com isso. Quando ele morreu, largado, possivelmente de frio, no mesmo lugar em que estuda a elite desse país, que vai ali se formar para garantir a continuidade desse mundo tal como ele é, e de tudo o que fizeram com João durante sua vida, nesse momento muita gente lembra que João existiu. Não do que ele fez para transformar esse mundo; lembram-se da sua aparência assustadora. Comemoram sua morte. E, amanhã, já terão esquecido dele para sempre, embriangando-se com as possibilidades que a vida lhes oferece. As possibilidades que foram arrancadas brutalmente de João e de tantos bilhões de outros todos os dias.

Por todos esses, seguimos lutando. Para que ninguém mais morra, após ser derrotado em uma luta pelo mundo, largado no relento, tratado como alguém que não merece o melhor que a humanidade é capaz de criar. A greve da USP e tantas outras lutas que travamos, sem desistir, é por isso. E, se amanhã, algum lutador entre nós tiver o mesmo destino que João, que continuemos lutando, incansavelmente, para que isso nunca mais aconteça, e que às mortes de todos esses seja feita justiça.

2 comentários:

Anônimo disse...

grande João-- louco de outra estirpe, q como vc disse, não gera mais-valia. homem livre. descanse em paz. PS_ que exagero vulgar: ele nunca atacou ninguém,nenhuma menininha da USP nem filhinha de papai não! nem bêbado...só falava bobagem demais...espíritos sensíveis demais estes...a burguesia e o conforto em excesso corrompe...

Anônimo disse...

Por que Lenin, ao invés de se preocupar em escrever sobre a construção do partido revolucionário, não se preocupou em escrever sobre a morte de mendigos? Por que Marx chamava este tipo de gente de lumpemproletariado?
Imagino que é porque a importância disso dentro da luta de classes é quase nula.
Você não é um marxista, um materialista, você é um idealista deprimido.