terça-feira, junho 18, 2013

Adeus, Sergio.




Ontem , enquanto nos preparávamos para ver as massas ressurgirem nas ruas deste país como há décadas não acontecia, deu seu último suspiro de vida um homem que pouco conheci, mas que muito representou em minha vida.

Há pouco mais de um ano partia sua filha Camila, uma das pessoas que mais amei e amo em minha vida. Durante todo o tempo em que convivi com Camila, quase nada conversei com Sergio. As relações entre eles eram dilaceradas e contraditórias, como geralmente o são as relações familiares neste mundo, em que são forçosamente cruzadas por uma série de horríveis conflitos que nossa sociedade doente impõe a elas. Esta relação entre eles, meio distante a contragosto deles mesmos, fazia com que eu mesmo não tivesse relação alguma com Sergio. Percebia nele ciúmes de sua filha e ele chegou até mesmo a proibir-me de dormir em sua casa depois que Camila passou a morar lá. Não tive rancor por isto, tive antes uma inquietação de ver como havia um fosso entre ambos que não se resolvia. O problema comigo era apenas uma pequena expressão disto.

Primeiro, achei que a relação de Camila era de indiferença ou ódio por seu pai, pois ao falar dele expressava rancor. Depois, vi que não. Que o rancor era amor distorcido. Doía nela ver o sofrimento de seu pai. Doía nela, como na relação com toda a sua família, ver a dor que seu próprio sofrimento psíquico causava nele. Ela se afastava também, talvez, como uma forma de protegê-lo de seu sofrimento, como muitas vezes fez comigo.

Mas eu percebi verdadeiramente como ela amava seu pai quando ele foi internado, pouco antes do suicídio de Cami, e quando vi como ela sofreu com isto. Como sofria de ver que ele tinha grande dificuldade em sua relação com o álcool. Como ela desejava que ele parasse de beber. Vi toda a profundidade de uma relação marcada por amor e sofrimento quando ela disse, um dia, transtornada, que ele podia “morrer logo pra acabar com isto”. O sofrimento dele também a fazia sofrer, e ela certamente sentia-se impotente por não saber como ajuda-lo.

Depois que Cami morreu, a postura de Sergio em relação a mim mudou. Só posso imaginar vagamente a dor que ele deve ter sentido ao ir com sua filha na ambulância e assistir ela, com apenas 26 anos, morrer. Uma morte causada por suas próprias mãos por não aguentar mais o sofrimento da vida. De longe, eu vi como ele ficou abalado. A última vez que vi Sergio foi no enterro de Camila. De todos da família, mesmo os que eu não conhecia, ele foi o mais formal e frio comigo. Não sei se era assim o seu jeito com as pessoas, acho que não. Acho que ele estava sofrendo muito e que havia entre nós um estranhamento. Eu também não sei lidar muito com as pessoas, em várias circunstâncias, e com ele isto se manifestava muito: eu tinha vergonha, constrangimento, sentia que minha presença o incomodava. Talvez a frieza tenha sido mais minha do que dele. A dificuldade que existia na relação entre ele e Cami havia se transformado em uma impossibilidade na minha relação com ele.

A mudança veio depois: conversávamos pelo facebook. Sergio passou a me chamar de filho, e a me dar conselhos que provavelmente queria dar a Camila. Como minha mãe faz, passou a criticar minha militância, dizendo que eu desejava coisas impossíveis, que os grandes revolucionários que me inspiram eram assassinos sanguinários. Discutíamos, fraternalmente, sabendo que nunca convenceríamos um ao outro. Ele me incentivava a estar próximo de meus amigos, de minha família: “isto sim é real”, dizia ele.

Aos olhos dele, eu provavelmente era um jovem ingênuo. O carinho que passou a demonstrar por mim era o carinho que sentia por sua filha, e que eu via como tinha dificuldade de se demonstrar na relação cotidiana entre eles, pelo menos durante o tempo em que acompanhei a relação entre os dois. Seus modos de ver o mundo eram distintos pelo vértice, mas eles pouco conseguiam conversar sobre isto. Quando ele criticava minha militância, estava criticando a de sua filha, que me orgulho de ter tido como minha camarada.

Ele me disse para ir a sua casa diversas vezes, lugar que foi a última morada de Cami. Que eu deveria pegar as coisas que quisesse para me lembrar dela. Fiquei sinceramente comovido com este convite, e prontamente aceitei. Muitas vezes disse que iria, mas nunca consegui colocar isto em prática. Tinha receio, é difícil dizer porque. Acho que tinha medo de ver a dor dele muito de perto, de não saber como estar perto dele, o que fazer. Contudo, minha intenção de ir era real, apenas esperava “o momento certo”. A minha dor por perder Cami é uma que permanecerá para sempre comigo, que faz parte do que sou e que para sempre mudou quem eu sou e serei. Hoje eu me esforço a cada dia para ser uma pessoa melhor, uma pessoa melhor como gostaria de ter sido com ela. Para ajudar quem eu amo como gostaria de ter ajudado ela, muito, muito mais do que fui capaz de ajudar. Levo dentro de mim as nossas conversas, os nossos dias juntos, tudo o que aprendi com ela. Sei do tamanho desta dor que carrego. A dor de um pai que perde uma filha, no entanto, só posso imaginá-la. Sinto em sua aproximação de mim uma tentativa de se aproximar um pouco mais de sua filha, do que ela acreditava, desejava e sentia.

Hoje, não posso mais aceitar seu convite. Não posso mais ir a sua casa, conversar com ele, conhece-lo melhor, trocar lembranças tão diferentes que teríamos sobre Cami, discutir e brigar a respeito do socialismo, do capitalismo, da revolução ou de sua impossibilidade. Sergio se foi. A notícia de seu câncer fulminante veio para mim como uma bomba, subitamente, poucos dias antes de sua morte. Seu filho Pedro me mandou uma mensagem, e eu, estupefato, nem consegui lhe responder. Eu não sabia que ele estava doente, e não pude lhe dar um adeus, como não pude dar adeus a Cami. Gostaria de tê-lo visto uma última vez, pois apesar de não termos sido próximos, a dor pela morte de sua filha, minha companheira, nos uniu de uma maneira muito peculiar. A união que se sente com alguém por perder uma pessoa em comum que se ama é difícil de entender e de explicar. Mas é algo muito real. A tristeza pela morte de sua filha foi uma dor pungente que o acompanhou até estes últimos dias.


Não posso deixar de pensar na ironia de que Sergio tenha partido justamente em um dia em que centenas de milhares saíram às ruas no Brasil, tomando o congresso nacional, a Assembleia Legislativa do Rio, a sede do governo no Paraná e dizendo que o povo acordou na Avenida Paulista. É o começo do começo de um novo tempo que se manifesta em todo o mundo, em que eu acredito que há chances muito concretas de se efetivar a mudança social pela qual eu vivo, e pela qual viveu Camila. A mudança que Sergio dizia ser utópica, e a respeito da qual discutíamos e discutíamos. Toda vez que vejo uma fagulha da luta de classes brilhando, penso em Cami, em como queria que estivesse aqui ao nosso lado para ver e participar da possibilidade de um futuro novo. Agora, pensarei em Sergio também, em como queria que ele estivesse aqui para dizer: “viu só! Eu e sua filha não estávamos errados! É possível um mundo diferente!”. E continuo a dar minha vida para isto, para que seja possível um mundo onde, entre tantas mudanças que queremos, os sofrimentos pelos quais Sergio passou não aconteçam mais. Que ninguém mais precise ver sua filha tirar a própria vida. Que as relações entre as pessoas que se amam não sejam atravessadas por incomunicabilidades, por rusgas que nós, humanos ainda tão rudimentares de uma sociedade doente, criamos. Que ninguém precise mais sofrer com uma doença tão dolorosa e mortal sem ter a seu alcance uma medicina capaz de curá-la. Por uma humanidade mais livre, mais feliz, mais plena, mais humana. Sua memória acompanhará minhas lutas. Descanse em paz, Sergio.


2 comentários:

Unknown disse...

que lindo texto
que merda
te amo irmão

carmen disse...

Nossa, que texto rico e lindo!!!

Eu tive uma irmã que era bipolar e era militante... Foi presa em 1969 e morreu há 3 anos, aos 65 anos, e perdi outro irmão de suicídio. Sei bem como é esta dor...
abçs consoladores